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Edição Limitada

“Não tenho tempo pra mais nada, ser feliz me consome muito”. Clarice Lispector

Edição Limitada

“Não tenho tempo pra mais nada, ser feliz me consome muito”. Clarice Lispector

"As coisas que entregamos e recebemos do mundo"

1. Uma amiga partilhou ontem a experiência da sua visita ao Convento da Cartuxa. Marcou-a muito. Marcou-me a mim só pelo que ela contou. Enviou um vídeo onde o Superior fala sobre a rotina do Convento. Sim, a clausura mais clausura também tem rotinas. Rígidas e bem definidas. Para além de tudo o que ela partilhou, depois de ver o vídeo o que mais me impressionou não foi a simplicidade, nem a austeridade, nem a tristeza que aquele monge manifestou por terem de sair depois de uma vida. Foi precisamente o seu oposto o que mais me impressionou - a alegria que se sentia na presença dele. Nota-se que é feliz. E isso devia fazer-nos pensar. No vídeo fala em cartas quando reclama com o carteiro o facto dele apenas ter jornais para lhe entregar, parece que já não há cartas, já ninguém escreve. Recebem visitas duas vezes por ano e informação escrita. Sobre esta diz: "podemos escolher o tema e o momento". Da visita da minha amiga fica ainda uma frase "passando do portão deixamos a prisão de fora para viver a liberdade de dentro". Mais uma vez... isso devia fazer-nos pensar.

2. Descobri recentemente um podcast através do Instagram da Anabela Mota Ribeiro. As redes sociais não têm apenas banalidades. Tal como tudo, quando consumidas com moderação podem ser até enriquecedoras. O Peixe Voador da Patrícia Palumbo surgiu durante aqueles tempos em que estivemos fechados em casa. Mais um exemplo de que nem tudo é mau nos piores dos tempos. Num dos primeiros episódios que ouvi dizia ela que gostava que o seu podcast fosse como uma espécie de meditação para quem ouve. Do que fala? Basicamente de música brasileira, autores brasileiros, o dia a dia de quem está fechado em casa. Tudo com uma musicalidade, uma graça e uma voz tranquila. Momento meditativo para mim, sem dúvida. E ao mesmo tempo que é leve na escuta, está carregado de informações e partilhas culturais. O que ouvi hoje teve duas coincidências. Haverá?! No início fala de uma carta escrita por uma amiga enquanto a ouvia fazer o seu programa de rádio, e depois lembra que quando os dias estão difíceis eles não estão difíceis apenas para nós, temos de pensar no coletivo, mesmo na hora da dificuldade. E como esse é um dos desafios da atualidade, pensar no próximo, no coletivo, em melhorar todos os dias e também no que podemos fazer para que "todo o mundo melhore junto com a gente". E mais à frente fala de uma entrevista da Clarice Lispector ao Tom Jobim. Cartas e Livros. As coincidências. Da Cartuxa ontem ficou (entre outras coisas) uma breve reflexão sobre cartas, da estante o livro da Clarice Lispector "Correio para Mulheres".

3. A semana passada, numa conversa de almoço, falava-se das pessoas que lêem nos transportes públicos. Essa espécie rara em vias de extinção. Nessa mesma conversa falei de um senhor e do seu espanto quando fui comprar uma caneta de tinta permanente. Mais ainda quando ele percebeu que efetivamente escrevo com essas canetas. Na verdade, acho que o espanto era mesmo por eu escrever. Por usar caneta e papel. Mal ele sabe que escrevo cartas e postais. E também leio nos transportes públicos, pouco - infelizmente, mas leio.

 

Os Dias Bons

Encontrei este texto guardado entre outros. É de 2012 mas podia ser de 1986 ou de 2025. Os dias bons não têm data.


 
Os dias bons são os dias em que se acorda, tendo dormido oito, nove ou, melhor ainda, dez horas e, reflectindo naquela ronha de quem já não consegue dormir mais mas gosta de ficar na cama (porque a temperatura e a companhia são perfeitas), se lembra que não tem nada para fazer, senão tomar o pequeno-almoço, o almoço, o chá e o jantar. E, se quiser, entretanto, nalgum intervalo qualquer, trabalhar, tanto melhor. Mas não importa. Dias de domingos antigos: dias de prazer sem saber.


Os dias bons nunca acontecem. Acontecem, quando muito, cinco ou dez mil vezes numa vida. Três míseros anos já têm mais de mil. Domingo, daqui a uma semana, terei a sorte nunca tida de estar casado e feliz com a Maria João há 12 anos. Doze anos cheios de dias bons, impossíveis de contar.


O amor, para quem é mais novo e não sabe como fazer, não é uma técnica ou uma táctica. Não há segredo. Não há lições. Ou se ama ou não se ama. Ou se é também amado ou não se é. Esperar é o melhor conselho. Experimentar é o pior. O segredo não é ter paciência: é conseguir manter a impaciência num estado de excelsitude. É como o «nunca mais é domingo». Se não sentirmos, todos os dias, que nunca mais é domingo, quando chegar o domingo parecer-se-á com outro dia qualquer.


Os dias bons não são os que ficam para lembrança. São aqueles que se esquecem, porque se repetem na mais estúpida felicidade mas que, todos juntos, servirão para um dia eu poder dizer «sim, eu já fui feliz».

Miguel Esteves Cardoso, in 'Jornal Público' (23 Setembro 2012)

 

 

O que faz falta

No livro "Abraço" do José Luís Peixoto li um texto sobre uma cabine telefónica. Aqui fica o excerto de quando o Zé Luís, como lhe chamava a avó, era pequeno:
 

"Mesmo muitos anos depois de ter sido instalada, a cabine telefónica não tinha qualquer risco ou sujidade. Aquele era um lugar que todas as pessoas da terra estimavam, como poderiam estimar um relógio antigo, ou qualquer objecto precioso. Muitas vezes de manhã, ao passar pelo terreiro, vi mulheres que moravam perto da cabine telefónica a lavá-la. Utilizavam água, que despejavam e que escorria, suja, ao longo das regadeiras. Utilizavam líquido dos vidros, que esfregavam com folhas de jornal. Nas outras ruas da vila, era exactamente assim que acontecia também com os caixotes do lixo. As pessoas que moravam perto dividiam entre si os dias em que os lavavam com vassouras, com baldes cheios de água. Depois viravam-nos ao contrário para secarem".

 

Acho que é disto que temos falta, do sentimento de bem comum, de responsabilidade sobre as coisas que são de todos e não são de ninguém. Ainda há uns dias, em conversa indignada com os meus pais sobre um rapaz que deitou um papel para o chão, estando ao lado de um adulto que nada fez, comentava o meu pai que os seus alunos (crianças!) se virem um casaco no chão, deixam ficar. "Não é meu!" é a resposta. E ainda por cima são perfeitamente capazes de lhe passar por cima. Afinal, não é deles!

 

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